Laura da Silva*, de 29 anos, teve a cabeça presa entre as
pernas de seu ex-marido por quase uma hora. Os socos alternados com golpes
“mata-leão” eram assistidos pelo filho de quatro anos, que gritava e chorava.
Quando finalmente conseguiu se livrar da imobilização, o ex-companheiro saiu de
casa e levou a criança.
Desesperada, Laura foi até a Delegacia de Defesa da Mulher
(DDM) da Sé e, finalmente, registrou um boletim de ocorrência. Esta foi a
primeira vez, nos últimos quatro anos, que Laura conseguiu, de fato, fazer a
denúncia em uma delegacia. “Perdi as contas de quantas vezes tentei denunciá-lo
desde que fui ameaçada pela primeira vez. Já fui em delegacias comuns e
especializadas, mas sempre me desestimulam a levar adiante”, afirma.
Hoje, Laura mora com seus dois filhos na cidade Cruz
das Almas, no sul da Bahia, e obteve na Justiça uma medida protetiva que
deveria manter o ex-marido distante dela. Na prática, segundo ela, ele ainda
envia mensagens para dizer que ela “estragou sua vida”.
Mudar de estado foi a única solução eficiente que Laura
encontrou para se sentir segura com as crianças. “Ele me agredia e ameaçava de
morte”, diz. No dia 12 de junho do ano passado, lembra, ele a jogou no chão e
tentou enforcá-la. “Quando ele pegou meu filho, decidi mais uma vez ir à
delegacia”, afirma. Às 2h da madrugada de um domingo, Laura seguiu para a
região central de São Paulo. Lá, enfrentou descaso e desestímulo. “O policial
disse que eu não seria a primeira nem a última mulher a passar por isso.”
A rotina de ameaças, agressões e estupros vividos por Laura
sequer chega a fazer parte das estatísticas de violência pela dificuldade em
realizar o registro policial. Não há um número que evidencie quantos casos
deixaram de ser registrados. Isso porque o único levantamento existente,
realizado pela Ouvidoria de Polícias de São Paulo, mostra que, em 2019, houve
58 reclamações de mulheres em relação às delegacias especializadas contra 51 em
2018.
O número não é dos maiores, mas apenas na capital paulista,
que tem 9 unidades voltadas às mulheres, foram 10 denúncias registradas na
Ouvidoria no ano passado, quase uma por mês. No estado, são 133 delegacias
da mulher, número que corresponde a quase 30% de todas as unidades
especializadas existentes no país.
A mulher precisa fazer a denúncia na Ouvidoria seja
presencialmente, por e-mail, telefone e até carta. “É um momento em que elas
estão extremamente fragilizadas. Qualquer desestímulo pode fazê-las perder a
vontade de denunciar”, afirma Ana Paula Freitas, advogada do Ibccrim (Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais).
"Foi bem agressiva e me interrompia. Queria focar no
momento da agressão. Me interrogou na frente de todos"
Paula, vítima de violência
Paula* foi à delegacia da mulher da zona sul em outubro de
2019 para registrar uma denúncia contra o marido. Os dois estavam se
divorciando depois de um relacionamento de 12 anos. Ela revelou que o
companheiro não aceitava o fim do casamento, então ele a trancou em casa e,
quando tentou pegar a chave dele, ele rasgou a camiseta dela.
Após a violência, ela foi sozinha procurar a polícia.
“Aproveitei um momento de coragem, queria resolver logo. Cheguei na troca de
turno e tive que esperar por uma hora e meia a delegada chegar. Eles fazem de
tudo para você desistir. Quando as pessoas chegavam, já avisavam que tinha que
esperar uma hora e algumas desistiam. Eu fiquei, mas isso já funcionava como
triagem”, conta.
A vítima também reclamou da forma com que foi interrogada
inicialmente por uma escrivã ainda no hall da delegacia na frente de outras
pessoas. “Sou esclarecida, se não fosse, teria chorado e ido embora. A forma de
perguntar foi truculenta, bem agressiva. Não tinha paciência para ouvir a
cronologia dos fatos, me interrompia e queria saber se caracterizava violência
ou não”, lembra.
Paula ainda presenciou outra mulher sendo desincentivada a
registrar a denúncia por falta de provas. “Todos diziam que não daria em nada”.
Após o depoimento, ela foi ao IML (Instituto Médico Legal) para receber o laudo
e oficializar a agressão. Para ela, este foi o momento mais constrangedor: “Só
tinham homens para me atender. O médico e o fotógrafo. Eu exigi uma mulher, mas
não tinha. Tirei a blusa e a calça. Só queria que terminasse logo. Foi muito
ruim, eu já estava fragilizada”.
Vítimas revelam que, muitas vezes, são desincentivadas a
registrar ocorrência
Matheus Vigliar / Arte R7
A delegada Jamila Jorge Ferrari é coordenadora das
Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo e explica que “as ocorrências de
violência doméstica não ficam restritas às DDMs. A mulher tem o direito de
registrar a ocorrência onde quiser. A decisão é dela”.
Segundo a lei Maria da Penha, o atendimento nas delegacias
da mulher não precisa necessariamente ser feito por uma funcionária, mas
preferencialmente sim. Todas seguem o Protocolo Único de Atendimento, que
padroniza e tenta humanizar o tratamento a mulheres. Para isso, todos
funcionários passam por uma capacitação: “Eles fazem um curso de atendimento às
vítimas de violência doméstica e sexual na Academia de Polícia”, explica a
coordenadora.
De acordo com a delegada Jamila Ferrari, o grande problema
hoje é o déficit de policiais em todo o estado e a falta de recursos materiais.
“Queremos diminuir a incidência de crimes, mas não as denúncias. A mulher nunca
pode se sentir desmotivada a ir ao DP”, destaca.
Segundo Jamila, os três crimes mais registrados nas DDMs
são: lesão corporal, ameaça e crimes contra honra, como calúnia, injúria e
difamação. A delegada Renata Cruppi, da DDM de Diadema, ressalta que houve um
aumento no número de casos registrados de ofensas e ameaças. “Esta é a primeira
fase da violência contra a mulher. Antes esses crimes eram considerados de
menor potencial.”
Não há uma média de boletins de ocorrência registrados
porque o número varia dependendo da região. Por exemplo, na 5ª DDM (Tatuapé,
zona leste da capital) foram 100 B.O.s em janeiro deste ano, mas na 6ª DDM
(Santo Amaro, zona sul) foram 600 ocorrências no mesmo mês. No interior, a
situação se repete: em janeiro em Sorocaba foram feitos 120 boletins enquanto
em Campinas foram 420.
Coragem para denúncia
O tempo estimado para uma mulher ter coragem de denunciar um
agressor, segundo a delegada Renata Cruppi, da unidade especializada de
Diadema, é de cinco anos. “Às vezes, ela consegue narrar só o começo da
violência. São necessários anos para ela dar o primeiro grito de socorro”, diz.
Apesar das agressões, ela não fez o registro na delegacia
Reprodução / Arquivo pessoa
Em abril do ano passado, em uma tentativa frustrada de
denunciar o ex-marido, Laura compareceu a uma delegacia na zona sul da capital,
e foi questionada pela autoridade policial se realmente gostaria de fazer o
registro, já que ele trabalhava e havia uma situação de dependência financeira.
“Estava roxa, com a boca sangrando e uma toalha de banho para estancar o
sangue”, lembra.
A delegacia estava lotada quando o ex-companheiro afirmou
que havia se arrependido. “Ele começou a falar que foi um surto causado pela
bebida”, diz Laura. “Como estava muito cheia, perguntaram se eu tinha certeza
que queria denunciar, se não era melhor fazer o boletim de ocorrência outro
dia. Voltei para casa porque ninguém estava disposto a me atender.”
Incentivo ao feminicídio
Somente no ano passado, 42 mulheres foram assassinadas na capital paulista pela
condição de ser do sexo feminino. O número de 2019 corresponde a uma vítima a
cada nove dias, um aumento de 55,5% em relação ao ano anterior.
Um dos motivos que explicam o aumento do número de
feminicídios é a resistência no momento de registrar o boletim de ocorrência
por violência física ou psicológica. “O feminicídio vem porque essas mulheres
vão diversas vezes a delegacias e são desencorajadas”, diz Ana Paula Freitas.
“É muito difícil para elas travar uma discussão com os policiais.” Outro
problema na hora de fazer o B.O. é, segundo a advogada, o registro apenas do
último ato de violência. “O correto é registrar a sequência de agressões,
principalmente em casos de estupros”.
Ao longo de sua atuação como advogada, Ana Paula presenciou
diversos tipos de violações em delegacias especializadas. “Acompanhei uma
mulher estrangeira e a escrivã não teve a menor paciência”, afirma. Em outro
caso, a advogada relata que uma mulher foi denunciar um caso de abuso por parte
de um motorista de aplicativo e a delegada acionou o marido da vítima. “Quando
se trata de violência psicológica, é muito comum afirmarem que não se trata de
um crime.”
A coordenadora de DDMs, Jamila Ferrari, acredita que
aumentaram os registros policiais porque as pessoas estão mais conscientes da
importância do B.O. “O feminicídio é um homicídio evitável. Ao denunciar, a
vítima fica mais forte e se sente acolhida. Ela precisa de todo um aparato:
saúde, educação, assistência social e emprego para se empoderar. É uma forma
integrada de tirá-la daquele ciclo”, ressalta.
A delegada revelou também que, apesar do aumento de casos de
feminicídio em 2019, "apenas 2% das vítimas tinham B.O. anterior. Em menos
da metade destes casos, a vítima tinha medida protetiva”.
"Muitas mulheres chegam à delegacia com sentimento de
culpa e precisam se sentir fortalecidas"
Renata Cruppi, delegada de Diadema
“Eles te tratam como bicho”
A assistente administrativa Elaine Munari, de 34 anos, viveu em 40 dias o que
classifica como a pior experiência de sua vida. “Foi um sonho, uma expectativa
de viver como casal que se transformou em pesadelo e medo constante”, afirma.
“O pior foi apanhar e sofrer abuso psicológico grávida.”
Elaine conheceu o ex-companheiro em 2018 e viveu com ele por
nove meses. Nesse período, ficaram noivos e ambos saíram de Piracicaba, no
interior de São Paulo, para viver em Blumenau, em Santa Catarina. “Ele tinha
ciúmes do meu ex-marido e logo nos primeiros dias me agrediu com um puxão de
cabelo e me colocou para fora de casa”, relata.
"Ele tinha ciúmes do meu ex-marido e me agredia",
diz Elaine
Reprodução / Arquivo pessoal
Assustada, Elaine começou a enfrentar situações de violência
física e psicológica quase diárias. “No mercado, ele me deu um soco na altura
da coxa e um soco na cabeça”, lembra. As agressões passaram a ser constantes:
“Ele me ameaçou com uma faca no pescoço e trancava as portas de casa para eu
não sair. Ele queria que, no dia seguinte, eu demonstrasse amor e carinho”.
Mesmo depois de descobrir a gravidez, o ex-marido tentou
sufocá-la com um saco plástico na cabeça. “Foi muito difícil porque eu estava
longe da minha família, sentia vontade de voltar para casa, mas tinha vergonha.
A gente sempre pensa que a pessoa pode mudar”, diz.
Impedida de usar o celular, Elaine conta que o irmão
desconfiou do isolamento e foi encontrá-la no aeroporto. “Peguei duas blusas, a
cachorra e fui.” Somente quando retornou a Piracicaba que conseguiu,
finalmente, procurar a polícia. “Fiz o boletim dia 8 de agosto do ano passado”,
lembra. “Tinha todas as provas, conversas por aplicativo, fotos dos hematomas,
mas me disseram que a delegacia de Blumenau seria responsável pelo caso".
A preocupação de Elaine é não saber o desfecho de sua
denúncia. “Estou fazendo tratamento psicológico, me sinto injustiçada. Voltei
para a casa dos meus pais, voltei a depender deles e ainda tenho que provar que
tive esse relacionamento".
Questionada pela reportagem, a Delegacia da Mulher de
Piracicaba afirmou que o boletim foi encaminhado para Blumenau. “Se tivesse
acontecido aqui, o processo seria investigado aqui”, afirmou uma funcionária.
“Não tenho como pedir uma medida protetiva se a agressão aconteceu em outro
lugar”.
A orientação das autoridades policiais é que as vítimas
registrem a violência na região em que o fato ocorreu. Na prática, porém, o
medo e a possibilidade de perseguição do agressor impedem que esse registro
ocorra. “As mulheres deixam as cidades com medo do agressor, não contam com a
rede de apoio. Às vezes moram sozinhas com o agressor”, afirma Cláudia Patrícia
de Luna Silva, presidente da Comissão da Mulher Advogada. “Nesse tipo de
violência, há a prática de isolar a vítima dos ciclos sociais”.
Segundo Cláudia, o problema está na falta de integração da
rede de apoio à mulher. “Há um desmantelamento da rede que deveria funcionar
com a delegacia, fórum, Ministério Público, saúde e vagas de emprego”. O que
deve ser respondido, explica a advogada, é se, após o B.O., o problema está resolvido.
“Nem sempre. Ainda virão uma série de etapas que a mulher precisará contar com
advogados, defensores e toda a rede de apoio para não desistir. Essa
continuidade ainda é um dos entraves da lei Maria da Penha”.
Uma opção que reúne todos os serviços num mesmo local é a
Casa da Mulher Brasileira. Inaugurada em novembro de 2019, a unidade funciona
24 horas no Cambuci, no centro da capital. É a primeira no Estado de São Paulo
e a sétima no país.
A Casa serve como porta de entrada para serviços
especializados que pretendem garantir condições de enfrentamento da violência,
fortalecimento da mulher e autonomia. No local, a mulher é atendida por uma
equipe multidisciplinar, que envolve Delegacia da Mulher, Ministério Público,
Defensoria Pública, Tribunal de Justiça e Guarda Civil Metropolitana, além de
apoio psicológico e assistencial, até Central de Libras. Há ainda um alojamento
para acolhimento provisório das vítimas em casos de iminência de morte.
Apenas na capital paulista, são 9 unidades especializadas em
atender mulheres
Divulgação / SSP SP
Entraves enfrentados
A delegada Renata Cruppi afirma que, para evitar o
desestímulo na hora de fazer o boletim de ocorrência, mulheres vítimas de
violência podem optar por fazer o registro acompanhadas. “Uma solução seria
irem acompanhadas por uma pessoa não envolvida emocionalmente. Para a pessoa
que sofreu violência, a demora dá margem para ela começar a se questionar. Às
vezes, só uma orientação já faz diferença para que ela não se sinta tão
fragilizada”, afirma. Cruppi diz ainda que muitas chegam à delegacia com o
sentimento de culpa. “Nesse momento, elas precisam se sentir fortalecidas.”
No estado, apenas 10 delegacias especializadas funcionam 24
horas e aos fins de semana. Em contrapartida, especialistas afirmam que é
justamente aos sábados e domingos que ocorrem os casos de violência. Para
Cruppi, os plantões nas delegacias normais têm condições de fazer este
atendimento.
“Para uma delegacia ser 24 horas, a administração vê se há
necessidade, se há recursos humanos e materiais. A meta, até o fim da gestão
Doria, é que sejam ao menos 40 unidades com funcionamento ininterrupto no
estado”, garante a delegada Jamila Ferrari.
A 1ª DDM de São Paulo foi a Sé, em 1985. A maioria das
unidades funciona de segunda a sexta-feira das 9h às 19h. A advogada Ana
Paula Freitas afirma, no entanto, que, apesar das dificuldades, as mulheres se
sentem muito melhor acolhidas nas unidades especializadas.
*nomes fictícios para preservar a identidade das mulheres
vítimas de Violência.
Fonte: R7
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